sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Crítica de "Que Horas ela Volta?"

Cinema brasileiro. Infelizmente isso se tornou sinônimo de produção massiva sem conteúdo algum. Comédias esdrúxulas patrocinadas pela Globo que não apresentam potencial artístico algum, porém atrai a grande maioria dos brasileiros. Mas, será que o cinema brasileiro sempre foi assim? A resposta é não. Na década de 60, por exemplo, o Brasil apresentava um cinema politizado reconhecido internacionalmente: o Cinema Novo. Um dos pilares desse tipo de filme foi Glauber Rocha, criador da "estética da fome". Os filmes se preocupavam em incomodar o espectador e alertá-lo sobre os problemas da sociedade, que na época era a seca no Nordeste que provocava as migrações. E, partindo de outro ponto de vista, "Que Horas ela Volta" tenta fazer exatamente isso. O filme conta a história da empregada doméstica Val (Regina Casé), que vive com os patrões em São Paulo. A estrutura da família é abalada com a chegada da filha de Val, Jéssica ( Camila Márdila).

As críticas sociais e comportamentais presentes no longa são incontáveis. Uma das mais fortes é o comodismo das classes mais baixas que, por falta de conhecimento, tornam-se alienadas. Val não percebe que está sendo subjugada pelos seus patrões a todo o momento, ela se sente confortável com a situação toda e não se preocupa em sair da inércia que aquilo provoca. Esse pensamento só muda a partir do convívio com a filha Jessica, que por ter um bom conhecimento acadêmico entende o comportamento da sociedade e a critica, fazendo com que Val repense a maneira como deve aceitar o tratamento a ela imposto. Outro fator importante no filme são as relações superficiais. É notável como a babá tem mais apego com o menino do que a própria mãe. Pela grande quantidade de trabalho e a rotina estressante, a mãe deixou a educação de seu filho de lado, fazendo com que a babá tornasse-se uma espécie de figura materna para o menino. Contudo, quando Fabinho presta o vestibular, a mãe é que exerce toda a pressão sobre ele, recebendo o crédito ou o desmérito pela situação. Portanto, a sociedade atual é tão corrida que uma mãe não tem a capacidade de cuidar de seu próprio filho? E quando não o faz, ela que precisa cobrar do menino com que ele tenha boas qualidades morais e intelectuais? Mas como ela pode cobrar isso sabendo que não teve papel no processo de formação de caráter do filho? Outro exemplo dessa falta de humanismo nas relações está no fato da família jantar usando aparelhos celulares à mesa. Isso é um símbolo enorme da superficialidade  familiar, visto que eles não são capazes de possuir uma conversa sadia "olho a olho". Portanto, essa crítica as relações está diretamente relacionada com a família, que se mostra deveras convencional e que não apresenta um real amor e união. O diretor faz questão de exaltar essa frieza ao longo do filme, com cenas que fogem do senso comum de uma família feliz.

Se Glauber Rocha apresentava os motivos da migrações, Anna Muylaert apresenta estas concretizadas. Porém faz uma crítica enorme ao preconceito regionalista existente. É notável a forma como todos os personagens, assim como os convidados que vivem em São Paulo e têm uma boa condição financeira, apresentam um olhar de desdém a Val. Porém, esta, devido a sua ingenuidade e alienação, não percebe tal fenômeno. E isso é um problema muito sério que realmente acontece no país. Muitas mulheres trabalhadoras precisam migrar para sustentar suas famílias, mas para isso precisam se ausentar da morada de seus parentes. Isso prejudica também as relações familiares. Se por um lado é realmente importante a aquisição de dinheiro para a manutenção da família, como fica o lado da educação de seus próprios filhos? Mais uma vez o filme apresenta uma crítica forte relacionada a sociedade. E o melhor de tudo é que se trata de um filme essencialmente brasileiro. Não é preciso adaptar nada para a nossa realidade, pois trata-se exatamente dela. Dessa forma, o filme se apresenta como um verdadeiro crítico que não se importa com a manutenção das ideologias presentes e apresenta a triste realidade atual com sensatez. Tal tristeza pode ser observada através da direção. É constante o uso de sombras que demonstram o mundo das ilusões sob o qual Val está submetido. Além disso, existe uma sobreposição constante de cores para simbolizar o predomínio dos patrões na casa. E outra coisa interessante da parte visual é o figurino de Val. O filme começa e ela apresenta roupas mais coloridas e leves. A partir do momento em que ela se aproxima mais de sua filha e começa a enxergar as coisas de errado, as roupas passam a ter uma coloração mais escura, simbolizando a amargura da empregada.

Aliás, Val é interpretada por Regina Casé. "É um filme da Regina Casé, não vou ver." A pessoa que teve esse pensamento perdeu uma grande interpretação. A atriz surpreende a todos, conquistando uma interpretação firme e convincente que faz com que o espectador se esqueça de quem ela realmente é. Uma atuação feminina tão forte que merece muitos elogios e uma quebra do preconceito existente. Não é um filme perfeito, pois possui alguns furos relacionadas a história em si. Mas esta em si não é o grande forte do longa. A força está na proposta de conscientização sobre os problemas da sociedade. Assim, "Que Horas ela Volta" transcende a categoria de entretenimento para se tornar reflexivo. O filme é um grande estudo das relações familiares seja na classe dominante ou na dominada e apresenta críticas sociais e comportamentais fortes que relembram os filmes brasileiros do tempo do Cinema Novo.

Nota: 

- Demolidor

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